Após terminá-lo, e descobrir que eu havia, finalmente, me encontrado no gênero chick-lit, eu esperei um tempinho (e pedi um tempinho para a cabeça sempre fervilhando de ideias...rs) e me joguei em outra história, há duas semanas, cujos temperos principais são as agruras do universo feminino vistas sob uma ótica divertida e moderna. Estou super empolgada com o projeto. Sinto que o livro ficará tão bom quanto o meu primeiro. Ou até melhor!
E, hoje, resolvi colocar no blog o primeiro capítulo desse novo trabalho para que as pessoas, que ainda não conhecem meu estilo e ficaram curiosas para saber como escrevo, possam entrar em contato com ele :)
" Capítulo 1
Tracei a meta
mais importante da minha vida aos oito anos. Não, não era ser veterinária,
bailarina ou médica. Era encontrar o par perfeito. Muitos dirão: “Onde estavam
os pais dessa garotinha que a deixaram se sexualizar em idade tão precoce?”.
Pois eu respondo: estavam bem na minha frente beijando-se como se não houvesse
amanhã. É. Foi graças a eles que a minha obsessão por encontrar o “príncipe
encantado” começou. Foi porque via o amor apaixonado que eles compartilhavam.
Parece a coisa mais estranha de se dizer nos dias de hoje, mas meus pais eram
tão apaixonados um pelo outro que, às vezes (muitas vezes), esqueciam até mesmo
que tinham duas filhas. E, não raro, deparávamos com os dois entregues à imensa
paixão, para não dizer fogo, que os consumia.
Hoje,
quando olho para trás, penso que talvez fosse melhor se eles tivessem
compartilhado brigas e o desfecho clássico: o divórcio. Assim, aos 26 anos, eu
seria uma desencantada do amor, quem sabe tão descrente que a obsessão por
encontrar o cara perfeito cedesse espaço para a obsessão pela profissão
perfeita.
Eu
sei. Estou sendo egoísta.
Quantas
pessoas não sonham em viver num lar harmonioso como eu vivi. Além disso, calafrios
percorrem todo o meu corpo só de pensar em me tornar uma pessoa cínica, com uma
pedrinha de gelo pulsando no lugar do coração. Prefiro continuar a ver
coraçõezinhos flechados dentro de balõezinhos em cada esquina que atravesso. E
fora o fato de minha irmã, Diana, criada pelos mesmos pais, ser o oposto de
mim. Os coraçõezinhos dela estão mais para soldados marchando em fila e batendo
continência sempre que ela pede.
Sobre
a questão da profissão, se eu fosse obcecada por ela, era bem capaz de eu ter
testado todas as carreiras do guia do estudante e, ainda assim, não ter
encontrado nenhuma que me satisfizesse plenamente. Sem me preocupar muito com
esse campo da minha vida, eu já passei pelas áreas de Pedagogia, Turismo,
vendas, eventos, top model...
Mas...
bem, a questão é outra. Eu estou tentando entender por que, se me empenhei
tanto em viver um grande amor, daqueles de “felizes para sempre”, nunca
encontrei o cara que me proporcionasse isso. O que estou fazendo de errado? O
que eles estão fazendo de errado?
Não.
A resposta para a última pergunta eu sei. E daria uma lista. Não! Daria uma
bíblia.
Só
que não tenho tempo de enumerar as falhas de meus ex-namorados agora. Porque
agora estou tomando outro fora. E logo outro ex se juntará àqueles que me
fizeram amargar uma ressaca amorosa horrível. Pelo menos, esse foi rápido. Não
deu tempo de me apegar muito. Um mês. Desde que nos encontramos na seleção para
trabalhar num evento até hoje, levou apenas 30 dias para ele se dar conta de
que não está preparado para um relacionamento sério. E é o que acabou de me
dizer, sentado à minha frente, num barzinho na Vila Madalena.
Deposito minha
Heineken sobre a mesa. Deixo Dudu (foi como ele disse que gostava de ser
chamado quando nos conhecemos) mergulhado um pouco mais no suspense. Deixo que
ele tema que a qualquer segundo eu vá jogar a cerveja em sua cara ou me
levantar e dar escândalo em pleno bar lotado. Ele bem que merece. O coitado
está suando dentro da camisa xadrez que insiste em usar. Não estarei inventando
nenhuma mentira se disser que é a mesma de todos os encontros que tivemos. E
nem tenho certeza se ele a tirou nos últimos 30 dias para lavar. O que vi no
Eduardo Aparecido, vulgo Dudu, mesmo? Ah, acho que tudo começou porque ele
abriu a porta para eu entrar no elevador do prédio onde haveria o recrutamento
para o tal evento. Foi isso. Fiquei encantada com o cavalheirismo dele. E quando
olhei em seus olhos, então! Vi os olhos verdes mais verdes que algum dia
coloquei meus próprios olhos de cor indefinida (eles ainda não se decidiram se
são verdes ou azuis). Saímos, logo após a entrevista, para comemorar com um
café numa confeitaria ao lado. Nós dois pegamos o trabalho. O evento era uma feira
agropecuária. Pelo menos, era trabalho sério. Nesse mundo de eventos, a coisa
nem sempre é “séria”. O papo fluiu tão bem! Está certo que amo conversar. Como
diria minha irmã, falo mais do que papagaio de pirata. Mas sou assim mesmo.
Adoro falar, rir, dançar. Faço tudo meio que exageradamente. E também tenho
dificuldade de focar numa coisa só. É, acho que já deu para perceber.
O
caso é que Dudu e eu nos demos bem desde os primeiros instantes juntos. Ele era
todo brincalhão, mas muito educado, filho único e pertencente à família de
novos ricos. Não que esse último detalhe tenha pesado. Nunca penso na conta
bancária do cara com quem estou saindo. Diana diz que sou a única mulher do
mundo que não pensa nisso. Eu nem ligo se sou a única a não se importar com
isso, se faço parte de algum clube privilegiado ou algo assim. O fato é que a
primeira coisa em que me ligo é nas atitudes do cara. Se abrir a porta do
carro, ou do prédio, no caso, apaixono-me. E se for bem-humorado e gostar de se
divertir, tenho certeza de que encontrei o amor da minha vida.
No
entanto, mais uma vez, não encontrei.
Dudu-Eduardo
Aparecido entorna sua Smirnoff. A segunda em pouquíssimo tempo. Melhor eu falar
alguma coisa antes que ele fique bêbado. E, então, quem passará vergonha serei
eu.
—
Você não está preparado para se dedicar a um relacionamento sério. Foi isso
mesmo que você disse?
—
Ufa, finalmente! — Solta o ar numa lufada cheirando a vodca. Viro o rosto.
Detesto esse cheiro. Na verdade, detesto bebidas alcoólicas. Eu bem que
gostaria de ter pedido um suco de laranja ou morango. Amo suco de morango! Mas continuo
insistindo em entrar na “vibe” das pessoas de minha idade e peço cerveja.
—
Engraçado... quando nos falamos ontem, você parecia bem entusiasmado com nosso
encontro de hoje. Até me chamou de “amorzinho”. E disse que estava com saudades.
Tudo mudou em menos de 24 horas? Ou quem sabe o encanto foi quebrado e você
voltou à sua forma verdadeira: sapo.
—
Elise... — Passa a mão pelos cabelos loiros lisinhos, que eu adorava fazer
carinhos. — Não é isso. É tudo novo para mim. Você sabe, não sou muito de
namorar. E você é diferente. Você é daquelas garotas que merecem um
relacionamento de verdade. Namoro, flores, bombons e... e coisas que as
mulheres gostam quando estão namorando. Eu fui chamado para um desfile. Um
desfile de verdade, para uma grife famosa. Não dá, Elise. Eu quero me
concentrar na nova carreira que está se abrindo para mim. Mas quem sabe, daqui a
um tempo...
Aí
está ela. Estava pensando quando a frase clássica ia aparecer na conversar.
Quando o carinha deixaria implícito que eu deveria continuar à disposição dele
para um futuro qualquer, um momento em que ele estivesse sozinho e afim de dar
uma “rapidinha”.
—
É claro, Dudu, quem sabe não é mesmo... Mas agora acho que vou embora. A
Heineken não caiu muito bem no meu estômago. Saí de casa apenas com um pacote
de salgadinhos na barriga. Hoje minha irmã teve trabalho no bufê e não pôde
fazer a janta. — Eu preciso sair daqui. Urgente. Caso contrário, vou acabar
entrando no modo humilhação. Ele sempre aparece. É incrível. Já tive vários
términos, já deveria estar vacinada, mas não. Eu começo brava com eles... e
termino implorando.
—
Você está bem? Eu posso te levar para casa, se quiser. Eu que te trouxe...
—
Estou ótima. Eu pego um táxi... ou vou a pé. Minha casa é perto daqui, você
sabe. — Levanto. Quase cambaleio. Seguro-me na cadeira.
—
Tem certeza, Elise? — Eduardo fica de pé. Sinto um punhal ser cravado no meu
coração. Ah, não acredito que ele está terminando comigo! Justo quando encontro
um cara que tem a mesma altura que a minha, ele dá o fora mais rápido do que os
sorvetes derretem no verão (sim, amo sorvete!). Caras com um 1,78m não dão sopa
aos montes por aí. Posso afirmar que eles estão em extinção. E acabo de perder
um dos últimos da espécie. O próximo, com certeza, terá, se muito, 1,75m. É
sempre assim. Vou ter que voltar a me acostumar com as rasteirinhas.
—
Elise?
Pisco,
voltando à realidade, ao bar, ao rompimento, a meu coração se despedaçando e
dizendo adeus ao ex-futuro amor da minha vida.
—
É sério, estou ótima. Pode ficar curtindo o resto da noite. Eu me viro. Adorei
nossos momentos juntos e... — Arrumo a bolsa no ombro e resolvo ir embora antes
que o modo “humilhação” ligue de vez. Mas assim que dou o primeiro passo, Dudu
Aparecido me chama novamente. Olho para ele, que está trocando o peso de uma
perna para outra, constrangido.
—
Você me chamou? — Abrindo espaço para uma sessão tortura, que não sei se é pior
do que a humilhação, dou um sorriso e começo a pensar se ele está me chamando,
porque está arrependido de ter dado um fim a nossa história.
—
Será que você poderia pagar as bebidas? É que... bem, eu ainda não recebi a
grana do último freelancer. E acabei
me esquecendo de pedir algum dinheiro para o meu pai.
As
lágrimas voam a jato para meus olhos. Mas me concentro a todo custo no ato de
abrir a bolsa, tirar a carteira e jogar uma nota de R$50 na mesa para não derrubá-la.
Nem penso que esse dinheiro vai me fazer bastante falta, porque tampouco eu
recebi ainda do último freelancer que
fiz. Viro-me, ziguezagueio entre os clientes amontoados na entrada e saio para
a calçada. Desisto de lutar contra o choro. Como o dinheiro que poderia pagar o
táxi está nas mãos de um filhinho de papai muito filho da mãe, só me resta
caminhar, umas dez quadras, até minha casa. E enquanto caminho, deixo as
lágrimas jorrarem. É quase uma da manhã. Ninguém vai testemunhar meu choro
compulsivo. Se testemunhar, estará tão bêbado que não vai saber se estou rindo
ou chorando.
Volto
a pensar em meus pais. Dessa vez, porém, só penso na saudade que sinto deles.
Por que eles tiveram que me deixar tão cedo? Esse assunto ainda é muito
delicado para mim. Sim, eles morreram. Há sete anos, logo que completei 19.
Morreram num acidente de ônibus, durante a viagem de segunda lua de mel para
Foz do Iguaçu. O ônibus bateu de frente com um caminhão que vinha na contramão.
Disseram para nós, minha irmã e eu, que as mortes foram instantâneas, pois eles
estavam no primeiro banco, logo atrás do motorista. Se eu não tivesse Diana,
não sei o que seria de mim. Meus pais eram tudo. Meus conselheiros, meus
melhores amigos, meu porto seguro. Minha mãe, Amarílis, era professora de
Português do ensino médio num dos colégios mais conceituados de São Paulo. Era
uma mulher de fala mansa, carinhosa e com um tique incurável pela língua
portuguesa culta. Ela ouvia um “para mim fazer” a quilômetros e corrigia no
ato. Todos nos policiávamos quando mamãe estava por perto. Palavrão, então, era
proibido em casa. Papai, para remediar a situação, inventou um jeito criativo
para substitui-los. Toda vez que queria dizer um palavrão, ele falava o nome de
uma fruta: “Vá à manga”; “Vá tomar no seu caju”. E assim ia... Isso divertia
muito mamãe. Mesmo que ela não confessasse e só sorrisse quando achava que não
estávamos vendo. Acho até que ela não abria mão da proibição dos palavrões, depois
que crescemos, porque adorava a brincadeira das frutas.
Papai
era o dentista da família. Nos dois sentidos. Era o único a ter a formação em
Odontologia e tratava também os dentes das filhas, da esposa e da sogra. Sua mãe
morava em Santa Catarina. Só a encontrávamos nas férias de verão. A melhor
época da minha vida. Amava nossas viagens em família para Florianópolis! Íamos
de carro todos os anos. Ricardo, meu pai, o homem mais paciente do mundo, ia
dirigindo e cantando. Era brincalhão. Tão alegre e alto astral! Mamãe era a
prática da relação. Ela costumava dizer que era o cérebro e meu pai, o coração.
E, por isso, davam tão certo juntos.
Seco
o rosto com o dorso das mãos. Será que é esse o problema, será que ainda não
encontrei o cara certo porque só me envolvo com cérebros insensíveis e
calculistas? E ainda não encontrei um coração amoroso e apaixonado? Não, acho
que não. Segundo Diana, eu sou o coração mole da família. A pessoa emocional
que mil vezes esquece que tem um cérebro. Então, é exatamente esse cérebro que eu
deveria encontrar no cara que procuro. E pior é que ela tem um pouco de razão.
Essa minha mania de ser boazinha com todo mundo, de acreditar em todo mundo, de
ver bondade em todo mundo, só me mete em encrenca. Talvez eu nunca tivesse
levado um fora na vida se fosse um pouco mais como Diana.
Diana
herdou muitas coisas de mamãe. O perfeccionismo, a praticidade e a agilidade em
tudo que faz. Menos a natureza carinhosa. É duro arrancar um carinho da minha
irmã. Só mesmo minha sobrinha, Samanta, minha Sassa, tem esse poder. Com ela,
Diana se transforma numa mãe ursa. E ai de quem tocar num fio de cabelo da
Sassa. Ela vai de mãe ursa a mãe leoa. Mas eu a entendo. Ter Samanta foi um
verdadeiro milagre, só realizado após superar oito anos de tentativas
frustradas, um exame acusando baixa contagem de espermatozoides (do meu
cunhado, claro) e um caso delicado de endometriose. Além disso, tem a grande
diferença de idade entre nós duas. Mais de uma década. Onze anos, na verdade.
Viro
mais um quarteirão. Meus pés doem. Quando finalmente posso usar um salto, não
tão alto, mas ainda assim é um scarpin
de salto, sou obrigada a percorrer mais de dois quilômetros a pé. Eduardo-Dudu
Aparecido deve estar rindo, nesse momento, até perder o fôlego. Bêbado e feliz
por ter levado cinquentinha de mim. Acabo de me lembrar que pagamos a
consumação logo na entrada. Dou um tapa na minha testa. Burra! Diana tem razão.
Às vezes, meu cérebro é engolido por meu coração e morre triturado.
Conforme
a casa, onde moro com Diana, meu cunhado, Talmo, e minha sobrinha se aproxima,
outro assunto me incomoda. Encontrar minha irmã acordada. Ela costuma se deitar
para dormir apenas quando me vê sã e salva, em casa, após uma balada. Em
momentos como esse, tenho o desejo súbito de morar sozinha. Só existem dois
impedimentos para a realização dele: Diana, Talmo e Samanta estão na casa que
era para ser minha. E eu tenho pavor de ficar sozinha. Pois é, a casa onde
moramos todos juntos é a mesma que eu dividia com meus pais. Diana morava em
outra, nos fundos da casa dos sogros, desde que se casou com Talmo, aos 22 anos.
Quando meus pais morreram, Diana, mais do que depressa, deixou a casa dos
fundos para trás e veio morar comigo. Confesso que se ela não o fizesse por
livre e espontânea vontade, eu imploraria para ela fazer. E, aí, entra a
questão do meu medo de ficar sozinha. Tenho pânico de ficar muito tempo sem ouvir
a voz de alguém ou conversar com alguém. Muita gente gosta de solidão, de ouvir
o eco do vento como única companhia. Eu sou o oposto. Para mim, isso é pior do
que filme de terror. Fico imaginando que a qualquer momento as paredes vão se
fechar sobre mim e não haverá ninguém para me salvar.
E
cá estou eu morando com minha irmã, que acredita ter recebido uma promoção como
minha mãe. Bom, pelo menos, tenho a companhia da minha Sassa. A maior alegria
da minha vida! E do Talmo também. Meu cunhado é um cara legal. Se você gosta de
pessoas do tipo capacho, sem opinião própria, voz ativa... na verdade, qualquer
tipo de voz, ele é a pessoa perfeita. Vários momentos eu me pego com dó dele.
Não gosto que tenham piedade de mim. Então, me esforço para não sentir isso por
ninguém. Mas é meio inevitável não sentir por meu cunhado. Diana o trata como
seu cachorrinho. Um cachorrinho que ela adestra com afinco. Algumas vezes me
admira que Talmo ainda não houvesse tido uma crise e não se voltou contra a
própria “dona”. Tenho a impressão de que ele se sente seguro dentro dessa
situação. Por mais inusitado que isso soe.
Pego
as chaves dentro da bolsa. Encontro aquela que abrirá o portão. Encaixo na
fechadura, dou duas voltas e puxo o trinco para entrar. O carro de Diana está
na garagem. Bem ao lado do de Talmo. E ainda sobram vagas para dois carros. Mas
o meu não está em nenhuma delas. Simplesmente porque não tenho um. Por que
teria um carro se eu não dirijo? É. Não tenho carta de motorista. Para ser
sincera, nunca peguei na direção de um carro. Meu pai morreu um pouco depois de
ter prometido me ensinar. E após a morte dele, peguei um trauma tão grande de
direção que jamais cogitei aprender com outra pessoa. O Talmo se ofereceu para
me ensinar uma vez. Cheguei a me animar um pouco. Quem sabe com ele eu perderia
esse medo? No entanto, minha irmã cortou nosso barato. Disse que se eu batesse
o carro, não teria dinheiro para consertá-lo. E que eu deveria aprender no
lugar certo: na autoescola, com um professor diplomado. Enfim, ainda não tive
coragem de procurar o tal professor.
A
sala está vazia. Ai, que alívio! Vou, na ponta dos pés, direto para o quarto
que divido com Samanta. Não vou tomar nem banho, para evitar chamar a atenção
de alguém. Entro no corredor que leva aos dois quartos e ao único banheiro.
Quando estou alcançando a maçaneta da porta do meu quarto, alguém sussurra
atrás de mim.
—
Como você chegou aqui? Não ouvi barulho de carro. O tal do Eduardo te deixou na
esquina?
Por
que eu tive fé de que Diana poderia estar placidamente dormindo ao lado de
Talmo? Ela nunca prega os olhos enquanto não me vê na cama, aquecida e segura. A
encenação do papel de mãe substituta está indo um pouco longe demais.
—
Eu vim a pé. Ele ficou no bar aonde fomos. — Coloco os cabelos cacheados loiros
atrás das minhas orelhas. Eu sou a mais clássica imagem de uma filha,
transparente como cristal, diante de sua mãe.
—
O que você quer dizer com “ele ficou no bar aonde fomos”? Você veio sozinha,
Elise? – Sua voz reverbera no corredor.
—
Acho que é melhor conversarmos amanhã, Di. A gente vai acabar acordando a Sassa
e o seu marido.
—
Vamos para cozinha. Você está precisando de um copo de leite quente para curar
esse bafo de álcool. — Prende meu pulso direito e me puxa. — Quantas vezes eu
já te disse para não beber?
—
Foi só uma Heineken, Di.
- —
É assim que começa, Eli: uma hoje, duas amanhã. E no mês que vem, você está
bebendo uma dúzia! Lembre-se de que eu organizo festas. Sei muito bem como isso
funciona.
Reviro
os olhos. Diana acha que sabe as regras para tudo. Isso é altamente irritante.
Como se pudesse controlar o mecanismo de cada coisa no universo. Não me admiro
se ela, algum dia, cismar em controlar quantas voltas a Terra deve dar em volta
do Sol por ano.
—
Não estou precisando de sermão hoje, Di. Estou precisando de um colo, isso sim.
— Abraço-a por trás, enquanto ela despeja o leite na leiteira para esquentar. Diana
é mais baixa do que eu. Mas essa não é uma informação relevante. Quase o mundo inteiro
é mais baixo do que eu. A cabeça dela chega até a base de meu pescoço.
—
Mais um fora, é isso, não é mesmo? – Coloca o leite quente na caneca, que pegou
no escorredor de louça. Nem se abala com meu abraço. Vira e me entrega a caneca.
—
Foi. Desse jeito vou desistir dos homens. — Sento à mesa, suspirando.
—
Duvido, Elise! É mais fácil você desistir de comprar bolsas. E olha que estou
colocando isso na categoria do impossível — debocha. — É o centésimo cara e
ainda você não aprendeu.
—
Não exagera, Di. Se alguém ouve, vai pensar que eu já saí com todos os caras de
São Paulo.
—
Se não saiu, está bem próximo disso. E eu já disse duas mil vezes que não é
assim que você vai viver seu conto de fadas. Espera aí, esse negócio nem mesmo
existe! Enquanto você tiver obcecada com essa ideia, só vai se machucar. E os
caras vão se aproveitar cada dia mais. Olha para você, Elise. Você é uma moça
linda. Quantas mulheres não gostariam de ter a sua aparência. E isso não é
coisa de irmã. Quantos olheiros de agências de modelo não te pararam na rua, te
implorando para fazer um teste nas agências deles? Você não precisa disso,
minha irmã.
—
Esse papo de novo, Diana. O que tem a ver minha aparência com minha falta de
sorte no amor?
—
Tudo! Você poderia estar no mesmo patamar da Gisele Bündchen! Você poderia
estar desfilando para as melhores grifes do mundo, ganhando rios de dinheiro,
famosa, com o futuro garantido. Mas perde tempo correndo atrás de um homem
inexistente.
Levanto.
Jogo o resto do leite na pia.
—
Mas não é isso que eu quero, Diana. Eu trabalhei nesse meio dos 14 aos 16 anos
e detestei. É um mundo falso, mesquinho e invejoso. Você e mamãe me
acompanhavam. Você sabe como é. Uma menina chegou ao absurdo de quase me jogar
da passarela quando passou por mim naquele desfile, lembra?
—
E do que você gosta, Eli? Qual é o maior desejo da sua vida? Não, não estou
falando de homens! Estou falando de profissão!
—
Ah, chega. Vou dormir. Odeio esse assunto.
—
Claro que odeia. Se gostasse, estaria realizada profissionalmente e não com um
buraco eterno no coração por causa de homem.
—
Muito obrigada por me lembrar disso! Ah, e sobre profissão, só para você saber,
na semana que vem vou para outra feira. Uma feira de carros. E se quer saber,
mais ainda, em cinco dias, vou ganhar R$1.500,00!
—
Ok, ótimo. É um bom salário. Mas, e depois, quando vem o próximo... deixa eu
adivinhar... — Segura o queixo e olha para o teto, fingindo pensar. — Daqui a dois
meses?
—
Ai, Diana, como você é chata! Por que você não se preocupa mais com a Samanta,
que é sua filha e menor de idade?
—
Porque a Samanta não me dá metade do trabalho que você dá. E ela é 20 anos mais
nova que você!
—
Eu não dou trabalho. Você é que é toda certinha. E quer que todo mundo seja
como você. Você precisa aprender a relaxar, curtir mais, ser feliz.
—
Eu sou feliz, Elise. Tenho uma família que amo e um trabalho que é tudo que
sonhei. — Guarda a caneca, que acabou de esfregar até brilhar, no armário, puxa
a cadeira em minha frente, senta-se e mira meus olhos da forma que só mamãe
sabia fazer quando ia falar de assunto sério. — Eu sei o que fazer com você, minha
irmã.
—
O quê?
—
Vou entrar no seu jogo. Vou te ajudar a encontrar o Senhor Perfeito. Seu tão
desejado príncipe encantado.
—
Mesmo? – Isso é novidade para mim. Diana empenhou dez anos da vida dela, desde
que tomei meu primeiro fora, para me persuadir a abandonar a ideia do cara
perfeito. E agora vai me ajudar a encontrá-lo?
—
Sim. E já tenho até mesmo o candidato.
—
Quem é? Eu conheço?
—
Não. É o novo colega de trabalho do Talmo. O nome dele é Roberto. É um cara
mais velho, viúvo, e tem, inclusive, uma filhinha, para quem organizei uma
festa no mês passado. É um cara muito gente boa e responsável. É exatamente do
que você precisa, Eli.
—
Quanto mais velho? — É a única informação que grita por minha atenção.
—
Acho que tem a minha idade, talvez um pouco mais — vacila.
Ai, nunca saí
com cara tão velho assim. Eduardo, vulgo Dudu, era até mais novo do que eu.
Tinha 23 anos.
— Acabei de sair
de um relacionamento, Di. Não sei se é uma boa ideia começar outro tão cedo
e...
— E desde
quando você liga para isso? Já se esqueceu do Caio? Você começou a namorá-lo no
mesmo dia em que terminou com aquele lá... como era mesmo nome dele?
— Vlad, Vladmir.
Mas eu não...
— Então, o
Vlad-Vladmir deixou você igualmente num barzinho, daí, lá mesmo, você conheceu
esse outro cara e engataram um namoro.
— Não foi bem
assim. Caio e eu ficamos, primeiro. Ficamos umas quatro vezes, e só então começamos
a namorar. Mas acabou não dando certo porque ele tinha que fazer um intercâmbio
e não quis me deixar presa a um relacionamento. Ele ficaria um ano na
Inglaterra.
— Na verdade,
ele lembrou que faria um intercâmbio um dia depois de te levar para cama. — Fuzila-me
com os olhos verdes.
— Fomos para
cama, como diz você, depois de três meses de namoro. E o intercâmbio foi uma
oportunidade repentina que apareceu na faculdade onde ele estudava. É claro que
fiquei mal pra caramba quando ele partiu, você sabe disso, mas eu acabei
compreendendo que era uma ótima oportunidade para a carreira dele.
— Você sempre
compreende tudo e todo mundo, Elise. Está na hora de alguém compreender você e
te fazer criar responsabilidade. Roberto é o homem para isso. Você só namorou
moleques até hoje. Você precisa de alguém mais velho, que te dê bons exemplos.
— Mas tem que
ser tão velho assim?
— Eu tenho 37
anos e não sou tão velha “assim”. Estou na flor da idade, como gostava de dizer
papai. Vou arranjar esse encontro para vocês e você terá seu “final feliz”. Ou
eu não me chamo Diana Aguilera dos Santos. — Levanta, ajeita a cadeira no
lugar, dá alguns passos, volta para conferir se a cadeira está colada à mesa. Então
me dá boa noite e sai da cozinha.
Jogo a cabeça
sobre os braços cruzados na mesa. Estou tão cansada! Não é um cansaço causado
pela privação de sono, porque fiz evento até a madrugada durante a semana
passada, ou porque fiquei na balada até tarde. É um cansaço antigo. Um cansaço
de alguém que deu tanto murro em ponta de faca que até mesmo o ato de levantar
o braço é um esforço grande demais. No fundo, não sei mais se o meu maior sonho
é encontrar uma pessoa com quem dividir meus anseios, minhas alegrias, minhas
expectativas, minha vida. Ou se é encontrar simplesmente meu lugar no mundo. Um
lugar onde a vida flui, linda, sem complicações, e cheia de promessas, como um
rio direto para o oceano, Não que eu deseje ter uma vida como a de Diana. Deus
me livre dessa provação! Quem quer um marido que diz “amém” para todos os
desejos da esposa; ou quem quer ser a esposa que tem todos os tipos de tocs
elencados na literatura médica? Eu, com certeza, não. Quero uma vida excitante,
com risadas, companheirismo e liberdade. Também quero aconchego e segurança.
Talvez Diana
tenha razão em alguma coisa. O cara mais velho pode ser a minha solução. É
isso. Vou dar uma nova chance ao amor.
Por que não?"